INCÊNDIOS SEM NOTÍCIA

Nos arredores da Floresta Nacional do Tapajós, entre Santarém (PA) e Belterra (PA), o chão embranquecido da floresta queimada contrasta com o verde vivo da mata em pé. O registro foi feito em 2015, ano com uma das maiores incidências de queimadas da história recente da Amazônia. / Foto: Flavio Forner

Incêndios sem notícia

Incêndios na Amazônia têm cúmplices perigosos: o crime, a falta de alternativas, a ineficiência das leis e até as mudanças climáticas. A prevenção ainda é insuficiente e, muitas vezes, suas histórias são pouco contadas

Era início de dezembro de 2015 quando o alarme de incêndio soou na mídia internacional, em uma postagem assinada pelos pesquisadores Erika Berenguer e Jos Barlow na versão britânica do projeto internacional The Conversation, especializado em cobertura de ciência. No artigo, descreviam cenas infernais. “Nas últimas cinco semanas acordamos sob um grosso véu de fumaça”, contam os pesquisadores. “Há dias mal conseguimos ver o sol”, continuam, “nossas roupas e cabelos cheiram constantemente a fumaça. Estamos vivendo em meio a um churrasco contínuo na maior floresta tropical do mundo”, concluem.

Entre setembro e dezembro, Erika, especialista em florestas tropicais da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, e membro da Rede Amazônia Sustentável (RAS), estava no município de Santarém (PA), um dos principais locais atingidos pelo fogo em 2015 na Amazônia. Ela conta que viveu os piores momentos de sua vida durante o tempo em que viu a floresta queimar incessantemente. “A população passava mal por causa de doenças respiratórias”, relembra. “Eu me senti como no filme Bambi, quando a mãe dele morre. Via bicho fugindo do incêndio, milhares de insetos pulando, queimando. Desesperados, os animais atravessavam a estrada. Quem não morreu queimado foi atropelado. Foi tudo muito forte”, relembra a pesquisadora, que, no auge do desespero, tentou inúmeras vezes apagar as chamas com as próprias botas – em vão.

Santarém ficou encoberta entre agosto e novembro de 2015 e de janeiro a maio de 2016. Nesses períodos, os satélites usados pela ONG Imazon – que publica boletins independentes e periódicos com as taxas de desmatamento e degradação florestal na Amazônia – não detectaram os sinais de incêndio, pois a presença de nuvens ou de fumaça no céu cega a visão dos satélites. Foi somente em junho de 2016, quando pesquisadores do mesmo Imazon preparavam o boletim do período, comparando dados de 2015 com os de 2016, que alguém notou algo atípico com relação aos focos de queimada em Santarém. O site de jornalismo ambiental OEco investigou a história. Em outubro, anunciou: A degradação florestal causada pelos incêndios que Erika viu em Santarém superaram o desmatamento da Amazônia inteira em 2015.

No total, entre os municípios paraenses de Santarém, Mojuí dos Campos, Uruará, Juruti e Belterra, queimaram 7,4 mil quilômetros quadrados – ou 740 mil campos de futebol. “Maior do que qualquer coisa semelhante que já havíamos visto em toda a Amazônia”, disse ao OEco o pesquisador do Imazon Antonio Fonseca, o primeiro a se deparar com os dados. Erika conta que tentou, na época, fazer alarde da história. Conseguiu alguma, porém pouca, cobertura de mídia nacional. “Fizemos mais barulho na Inglaterra”, relembra.

Diferentemente de savanas ou algumas florestas temperadas, as florestas tropicais úmidas não foram feitas para queimar. O que o fogo não destrói imediatamente agoniza por anos. Estudos estimam a morte lenta de até metade das árvores três anos após a ocorrência de um incêndio. A ciência ainda não conhece plenamente o prazo de recuperação total de uma floresta, ou mesmo se ela um dia irá se recuperar. Em Santarém, a extensão do incêndio foi tão grande que os pesquisadores da RAS voltarão aos locais onde realizaram as coletas de espécies de fauna e flora para checar novamente sua ocorrência. Alexander Lees, especialista em biodiversidade do grupo da Manchester Metropolitan University, lamenta: “Depois de queimar várias vezes, as florestas podem perder sua capacidade de recolonizar.”

Outro alerta dos pesquisadores é de que as espécies que passam a dominar novamente a área são diferentes das que existiam antes de a floresta ser queimada. Isso acontece porque algumas espécies são menos exigentes na hora de se adaptar a um ambiente. “A floresta depois do fogo ainda tem plantas e aves, mas essas espécies costumam ser generalistas, aquelas que crescem nas mais adversas condições. Com isso perde-se uma gama de espécies especialistas, que são mais raras e que desempenham papéis fundamentais em vários processos ecológicos”, explica Erika. A pesquisadora dá o exemplo dos cipós, que são facilmente encontrados em florestas secundárias e que podem dar a falsa impressão de que aquela mata é rica em vegetação: “Na verdade ele pode até impedir a recuperação das árvores. É um ciclo perverso”, conclui.

O uso tradicional do fogo na região como técnica barata para abrir pastos ou áreas de pequenos cultivos, dificulta o trabalho dos brigadistas do ICMBio, órgão ambiental federal. Na estiagem, as chamas avançam sobre unidades de conservação e a fumaça tóxica invade comunidades locais. / Fotos: Flavio Forner

Apagar incêndio é só fogo de palha

Estima-se que por trás de praticamente todo incêndio em florestas tropicais está a mão humana. No fósforo riscado pelo homem há um componente de tradição e uma questão de custos. O fogo sempre foi usado para ajudar o homem no campo, desde os indígenas, a abrir a floresta e manter limpa sua área de cultivo. Ainda hoje é o único artifício de muitos pequenos agricultores, carentes de políticas públicas que os auxiliem a ter acesso a técnicas alternativas ao uso do fogo no preparo do solo. Soma-se a isso o componente criminal: quando o fogo é parte de um processo intencional para degenerar a floresta. “Com as queimadas, a mata vai ficando cada vez mais rala, até não se poder dizer mais que aquilo é uma floresta. Aí alguém vai dizer ‘não foi culpa minha’ e usar isso como argumento para terminar de desmatar a área”, explica Erika.

Há, no entanto, outro mecanismo menos falado de ignição. A degradação da floresta, ela mesma, retroalimenta o processo do fogo, reunindo com perfeição os elementos necessários a um bom incêndio. Florestas que já perderam suas grandes árvores têm o dossel mais aberto e mais folhas e madeira no chão. Com a floresta mais aberta, aumenta a incidência do sol e do vento – tornando a mata seca. Madeira e folhas no chão agem como combustível. Também o efeito de borda participa desse ciclo: o pedaço da floresta que faz fronteira com áreas já abertas fica vulnerável e seco, o que permite que as chamas penetrem com mais facilidade. Todo o processo ganha um aliado forte de tempos em tempos: o clima.

Área queimada por ano no bioma Amazônia

A relação entre o clima e a ocorrência de queimadas na Amazônia fica mais evidente na análise do gráfico abaixo: nos anos de 2005 e 2015, quando fenômenos climáticos elevaram as temperaturas, uma maior extensão da floresta foi incendiada. A confluência é ainda mais preocupante porque, de acordo com pesquisas, as estações secas na região serão cada vez mais longas e intensas.
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Gráfico: InfoAmazonia /  Fonte: Inpe

O ano de 2015 foi de El Niño, fenômeno que ocorre graças ao aquecimento fora do normal das águas do oceano Pacífico e altera índices de chuva e padrões de vento no mundo todo, com diferentes consequências para cada região. No período de 2015 a 2016, também as águas do oceano Atlântico estiveram mais quentes. O resultado foi uma seca intensa na Amazônia, o que colaborou para aumentar as queimadas. O saldo final? Mais de 87 mil focos de incêndios, um aumento de 48% em relação a 2014 (um ano sem El Niño) e de 23% em relação a 2010 (ano de um El Niño de médio porte). Até 2100, predizem as pesquisas, as estações secas na Amazônia serão ainda mais longas e intensas.

A fumaça constante no ar entre 2015 e 2016 levou diversos municípios amazônicos a decretar pela primeira vez estado de emergência devido ao fogo. Em agosto de 2016, o governo federal lançou a campanha “Fogo no mato, prejuízo de fato”, com o intuito de conscientizar a população para evitar queimadas. A experiência de Erika deixou claro, para ela, que combate não é o caminho ideal. “Apagar incêndio não é o suficiente”, afirma. “Se a gente acredita que as secas sejam cada vez mais frequentes e longas, uma política apenas centrada no combate ao fogo se torna inócua. Temos que partir para prevenção”, diz Erika. “É a mesma coisa que ficar prendendo aviãozinho do tráfico, quando o que se precisa é mudar toda a política de drogas”, compara.

Área queimada (em km²) por ano nos biomas do Brasil

Em 2015, quando o fenômeno climático El Niño foi bastante intenso, o clima mais seco fez com que a ocorrência de incêndios na Amazônia ultrapassasse os eventos na Caatinga, um ambiente naturalmente mais árido. Cientistas especulam se a degradação e o desmatamento, aliados às alterações climáticas globais, podem levar à savanização da Amazônia, ou seja, à transformação da floresta tropical em um cenário de savana semelhante ao Cerrado brasileiro, onde o fogo, embora amplificado pela ação humana, é um componente natural da paisagem.
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Gráfico: InfoAmazonia /  Fonte: Inpe

“Há uma questão social inerente a esse problema”, explica Joice Ferreira, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental e uma das coordenadoras da RAS. “Não adianta termos leis dizendo que não se pode queimar quando um agricultor familiar vê no fogo a única alternativa, a mais viável e barata, de limpar a terra. A política não pode desconsiderar o contexto social e econômico e a falta de opções dos atores locais. Senão fica muito bonita no papel, mas na prática não vai ser seguida”, conclui. Jos Barlow, também da RAS, vê na luta contra o fogo uma possibilidade de unir atores que dificilmente convergem para o mesmo objetivo. “Evitar os desastres por incêndios está no interesse de todos, dos madeireiros, dos pequenos agricultores, dos grandes fazendeiros, do governo e de quem vive nas cidades e sofre as consequências da fumaça na sua saúde. O fogo pode nos ajudar a criar uma agenda comum de proteção contra a degradação florestal na Amazônia”, conclui Jos.